O desafio da Odontologia Preventiva

Odonto Magazine – O Brasil, infelizmente, ainda é reconhecido como o país dos desdentados. Como a Odontologia Preventiva pode reverter este quadro negativo?


Sônia Groisman - Ainda é grande o acometimento da doença cárie e doença periodontal na população. O procedimento eletivo da exodontia no SUS está à frente dos demais procedimentos.


No Brasil, 15% das pessoas são desdentadas, e apesar de crescido o número de escovações supervisionadas, este quantitativo ainda é pequeno. O ranking de leis nos Estados pesquisados evidencia a pouca relevância dada à saúde bucal. 60% das crianças com cinco anos têm cárie, escolares com 12 anos têm média de 2,8 dentes cariados, perdidos ou obturados. Na adolescência, a média sobe para 6,2. Entre adultos, a média é de 20,1, e em idosos, é de 27,8.

A grande questão na reversão desse quadro passa primeiramente pela formação acadêmica do profissional, seguida pela atualização dos professores e pela contratação de mão de obra (cirurgiões-dentistas com especialidades em Saúde Coletiva e da Família aptos a trabalhar não somente multidisciplinarmente, mas ofertando a contribuição da Odontologia, dentro do contexto multidisciplinar). Ainda é necessária a participação de gestores especializados em Odontologia da Família. A Odontologia Preventiva foi um processo evolutivo da Odontologia que ocorreu na década de 1970. Hoje, vive-se a Odontologia de promoção de saúde, que deve trabalhar a doença cárie por meio da teoria ecológica da placa de Marsh. A doença cárie deve ser vista e tratada não apenas do ponto de vista socioeconômico, mas também microbiológico. E, quando me refiro à visão microbiológica, alo sobre o biofilme, sua ecologia e como a Odontologia pode e tem recursos científicos e materiais que a habilitam tratar a cárie dessa forma, mas necessita que os gestores insistam nessa forma de atuação, assim como a ação baseada na atividade cariosa.

Odonto Magazine – Como o profissional de saúde bucal pode auxiliar a família a estimular as crianças a terem uma boa saúde bucal, ou seja, na construção de hábitos saudáveis?


Sônia Groisman - Uma vez que a estratégia do Programa de Saúde da Família (PSF) trabalha baseada em risco familiar, é muito importante a capacitação dos agentes comunitários e dos Auxiliares de Saúde Bucal (ASBs) para desenvolverem suas habilidades profissionais de convencer a família a ir a uma clínica de saúde da família. Os ASBs são fundamentais para as ações coletivas em grupos específicos, tais como de hipertensão, de gestantes, antitabagismo, etc. Outra forma de atuação é o trabalho deste grupo de profissionais no Programa Saúde nas Escolas (PSE). Rotinas de escovação supervisionadas e/ou realizadas pela equipe auxiliar que prestigia, corrige e qualifica as rotinas dos multiplicadores de promoção de saúde bucal. Entre as atividades essenciais para promover a qualidade da saúde bucal, é possível citar: o desenvolvimento de ações programadas de promoção da saúde, a prevenção de doenças e de assistência voltadas ao controle das patologias crônicas e/ou às populações mais vulneráveis do território. As famílias prioritárias são definidas a partir de critérios de risco social. Levando em conta esta classificação, é importante a organização de visitas domiciliares, com ações de busca ativa, levando informações - pautadas nas realidades locais - sobre hábitos de saúde que podem ser aplicados a toda família, uma vez que pais conscientizados podem ser agentes multiplicadores de mudanças em prol da saúde bucal e geral. A importância do trabalho familiar ainda perpassa pela compreensão de que indivíduos são seres sociais sujeitos a riscos sociais, psicológicos, biológicos e, nesse contexto, a família determina comportamentos, influencia nas decisões e constrói hábitos.

Odonto Magazine – Qual é a importância do acompanhamento odontológico na fase escolar?


Sônia Groisman - O Programa Saúde nas Escolas (PSE) visa abordar escolares que se encontram em grupos de faixas etárias semelhantes, permitindo à equipe auxiliar e ao cirurgião-dentista escolherem linguagens adequadas para cada grupo etário. Entre as estratégias intersetoriais, estão as cidades saudáveis, com locais de promoção de saúde em escolas. O PSE se pauta na longitudinalidade, constituindo um ambiente de relação mútua e humanizada entre a equipe de saúde, indivíduos e família, ao longo do tempo, ou seja, criando vínculos.

Odonto Magazine – A Odontologia Preventiva é deixada de lado, talvez por pensamentos capitalistas que cercam o âmbito odontológico. Como mudar essa ideia?


Sônia Groisman - Esse quadro só pode ser revertido quando as faculdades de Odontologia no Brasil deixarem de ter o foco do tratamento centrado na doença. A reparação é uma parte do tratamento, mas a desmonopolização do saber, ligada ao autocuidado, é a fase mais importante do tratamento odontológico. Essa mudança precisa ser feita nos professores universitários. A partir desta premissa, a Associação Brasileira de Ensino Odontológico (ABENO) tem realizado rodas de discussão, tentando reverter o quadro do tratamento voltado para a doença, para o voltado para promoção da saúde e para a inclusão da disciplina de Cariologia nos currículos odontológicos do Brasil, como discutido na 49ª Reunião da Associação Brasileira de Ensino Odontológico (Abeno), em João Pessoa, em 2014. O encontro contou com a presença do presidente da entidade internacional, o Prof. Andreas Schulte (Universidade de Heidelberg, da Alemanha). A Diretoria da Orca elencou um grupo de professores brasileiros, pela necessidade de liderança clínica brasileira voltada para a Cariologia, no qual me incluo em conjunto com os professores Fábio Sampaio, Marcelo Bonecker, Jonas Rodrigues, Léo Kriger e Saul Paiva. Entretanto, esse caminho ainda é árduo, e a Odontologia ainda trabalha voltada para receber honorários por procedimentos, na maioria das vezes, restaurador e não pela não ocorrência das doenças bucais.

Odonto Magazine – Qual é a importância do entrosamento entre os profissionais de saúde bucal e o pediatra responsável pela saúde geral da criança?


Sônia Groisman - As ações de saúde bucal devem estar integradas às demais ações de saúde da unidade básica, e os profissionais devem estar capacitados para atuar de forma multiprofissional e interdisciplinar.


Realizamos um estudo onde os bebês (294 crianças com entre nove e 15 meses de idade) atendidos no Instituto de Pediatria Marta Gestagão (IPPMG) da UFRJ recebiam uma carteira odontológica, e o pediatra era orientado a não atendê-lo se não tivesse passado pelo departamento de Odontologia. Esse é o exemplo de um trabalho que precisa ser conquistado, a partir de reuniões multidisciplinares, onde o cirurgião-dentista deve conscientizar as outras áreas médicas sobre sua relevância na saúde bucal. Como resultado do trabalho mencionado, foi possível observar que o índice que afere o número de dentes cariados, perdidos e obturados, na dentição decídua, o ceo-d foi reduzido após três anos de participação no grupo de protocolo multidisciplinar.

Odonto Magazine – Hoje, várias doenças de caráter sistêmico podem ter as bactérias ou algum tipo de desordem da cavidade bucal como fator etiológico. Como a Odontologia Preventiva pode reduzir esses índices?


Sônia Groisman - A doença periodontal pode aumentar a necessidade de insulina e também as complicações do diabetes (DM). Esses fatos dificultam a resposta ao tratamento, mas com cuidados necessários e com produtos individualizados, é possível diminuir o processo inflamatório e reduzir a necessidade de insulina, permitindo o balanceamento do diabetes. Sem o cuidado individualizado, não se obtém o resultado desejado. Corroborando com essa relevância, temos pela especialidade médica da Endocrinologia a definição de que a periodontite é a sexta maior complicação do diabetes. No que tange os problemas respiratórios, cardíacos e até o derrame também podem ser agravados pela doença periodontal. Na gravidez, pesquisas científicas mostram que mães com problemas periodontais apresentaram risco 7,5 vezes maior de nascimento prematuro e de baixo peso. Indivíduos com DM apresentam condições propícias à ocorrência de complicações que podem assumir grandes proporções, incluindo a doença periodontal e outras patologias bucais, assim como maior prevalência de CPOD (dentes cariados, perdidos e obturados). Dentre as principais manifestações bucais dos pacientes diabéticos não controlados, estão a xerostomia, glossodinia, distúrbios de gustação e doença periodontal. Diversos estudos demonstram que a prevalência de cavidades cariosas em pacientes diabéticos é maior do que em pacientes não diabéticos.

Odonto Magazine – As ações de Odontologia Preventiva apresentadas pelo Governo brasileiro são eficazes, se comparadas a real necessidade do segmento?


Sônia Groisman - O Brasil caminhou muito para a melhoria do atendimento odontológico da população brasileira, entretanto, levantamentos epidemiológicos retratam não apenas alta prevalência de ceo-d em crianças abaixo de cinco anos, onde o item cariado é encontrado em 31% a 39%, mas também evidencia que crianças de 18 a 36 meses de idade já apresentam um dente cariado. Porém, o quadro é mais grave na população com mais de 45 anos e idosos, ou seja, como ocorreu nos países desenvolvidos, esses dados evidenciam que, também no Brasil, enquanto crianças, jovens e adultos estão nas escolas e são sujeitos a um programa com contato com fluoretos, ocorre a desaceleração da perda mineral, entretanto, se hábitos de saúde bucal não são estabelecidos, ocorre o aumento do CPO-D em idades mais avançadas.

Odonto Magazine – Recentemente, o criador do Kit Escovinha, o cirurgião-dentista Fabiano Vieira Vilhena, recebeu o prêmio Finep de Inovação. Qual é a importância desse reconhecimento para a saúde bucal nacional?


Sônia Groisman - É de fundamental importância o desenvolvimento de tecnologias autossustentáveis e criadas dentro da nossa realidade, baixando o custo da promoção de saúde e estimulando a outros a ousarem em suas ideias.


Torço para que surjam sempre inovações para contribuir com a saúde bucal da população brasileira.

Odonto Magazine – Como a senhora visualiza o futuro da saúde bucal da criança brasileira?


Sônia Groisman - Acredito que tudo possa melhorar quando a Odontologia, os governantes e os gestores vislumbrarem, efetivamente, a real relevância da saúde bucal, compreendendo que saúde bucal significa mais do que bons dentes, levando em conta que saúde geral é essencial para o bem-estar. Os recursos estão sendo liberados para a Odontologia, mas para uma ação de promoção da saúde, todas as instâncias devem minimizar a valorização dada às próteses e aos implantes, valorizando, de maneira efetiva, o diagnóstico de atividade de cárie e da doença periodontal, premiando, talvez, os municípios com menores percentuais de atividade de doenças bucais, no caso da cárie dental, fazendo uso do conhecimento da Cariologia na saúde pública.
A partir dessa visão, é possível que, no futuro, tenhamos uma melhor condição de saúde bucal na totalidade da população brasileira, mas, para isso, o segmento da Odontologia Social ou da Saúde Coletiva e da Família merece ser mais valorizado em detrimento da área reabilitadora.